Atualmente, após sermos acometidos por uma pandemia provocada pelo SARS-CoV-2, responsável pela COVID-19, com todas as restrições possíveis, sentimos como nossos hábitos e nossas rotinas sofreram significativamente com o novo cenário que nos foi imposto.
Por conta disto, sentimo-nos desamparados, rodeados de incertezas, sobretudo em relação ao amanhã, abalando nossos pontos de referência e aquela aparente estabilidade relativamente assegurada pelo cotidiano, essa esfera de aspecto comunal e de função integradora.
Neste caos instaurado, que abalou o ser humano em todas as suas instâncias – da mental à econômica, muitas pessoas se refugiaram na literatura, como essa válvula de escape para algo que estava – e ainda está – a nos incomodar ao ponto de nos aterrorizar. No meu caso, no lugar de leitora que também ocupo, encontrei certo amparo na poesia de uma poetisa em particular: Adélia Prado.
Geralmente, carimbada como “poeta do cotidiano”, a mineira de Divinópolis produziu uma poesia que, a meu ver, transparece certo acolhimento, talvez pelo fato de ela olhar justamente para o cotidiano, para esse dia a dia que todos nós vivemos e que foi significativamente rompido, alterado, corroído. Por elevar as tarefas simples da sua rotina, ela consegue fazer com que o leitor se sinta acolhido por aquilo que lhe é familiar e que possui certa beleza por ser calcado na simplicidade. Como não identificar nos versos abaixo do poema “Momento” a transitoriedade do tempo que se manifesta nos desgaste dos utensílios que compõem nosso cotidiano?
Enquanto eu fiquei alegre,
permaneceram um bule azul com um descascado no bico,
uma garrafa de pimenta pelo meio,
um latido e um céu limpidíssimo
com recém-feitas estrelas.
[...]
A vida é mais tempo
alegre do que triste. Melhor é ser.
Como não se sentir amparado pelo tom otimista e leve no final do poema, ao decretar que “Melhor é ser”, já que “[a] vida é mais tempo alegre do que triste”? Na sua poesia predominantemente solar percebemos certo olhar terno para o humano e para sua principal característica: a sensibilidade. Essa sensibilidade marcada pela euforia nos primeiros versos de “Fragmento”: “Bem-aventurado o que pressentiu/ quando a manhã começou”; ou em seus últimos versos: “o mormaço abranda/ um vento bom entra nessa janela”, como se estivesse a oferecer um sopro de esperança para apaziguar o espírito do leitor.
Possivelmente a narração em verso e, até mesmo, a linguagem mais coloquial, mais próxima da que usamos no dia a dia, sejam recursos que colaborem para essa poesia do amparo produzida por Adélia, mas não menos complexo, visto que os detalhes reveladores e explorados pela poetisa colocam em evidência profundas reflexões.
Contudo, insisto, o amparo ainda se faz notar, especialmente nos versos carregados por certa espiritualidade marcada pela relação que o eu-lírico estabelece com a entidade divina, como nos versos do poema “Duas maneiras”:
se vejo que Ele [Deus] me espreita,
penso em marca de cigarros,
penso num homem saindo de madrugada para
adorar o Santíssimo.
[...]
Quando Ele dá fé, já estou no colo d’Ele,
pego Sua barba branca,
Ele joga pra mim a bola do mundo,
eu jogo pra Ele.”
Perceba, leitor, a relação natural e espontânea, tal como a de uma criança, que o eu-lírico tem com Deus. Essa intimidade, a ponto de poder sentar no colo e brincar com Ele, mostra a necessidade do simples, que permite certo conforto espiritual através de olhos que nos espreitam como se estivessem numa vigília informal e amena, com o intuito de nos tirar do desamparo mesmo.
Assim, é na ritualização do cotidiano que Adélia mostra que não há lugar para a desumanização moderna e para o caos instaurado por uma pandemia; logo, o homem deve recorrer à espiritualidade a fim de superar as dificuldades e depois alcançar a recompensa, como lemos nos versos do poema “O reino do céu”:
Descansaremos porque a sirene apita
e temos que trabalhar, comer, casar,
passar dificuldades, com o temor de Deus,
para ganhar o céu.
A poesia de Adélia parece lembrar a de Mário Quintana pela simplicidade da matéria poética, pela beleza extraída dessa simplicidade, pelo tom marcado por certo otimismo… quem não se sente acolhido e/ou amparado por esses poetas, bom sujeito não é.
Blogger, Andarilha na Literatura e Doutora em Letras. Colunista na Revista Entre Poetas e Poesias.