No dia 1º de novembro de 2022, celebrou-se o centenário de morte do grande escritor Lima Barreto. A meu ver, um autor brasileiro indevidamente injustiçado, inicialmente, pelo estigma do preconceito étnico-racial, que impunha barreiras para o seu sonho de ser escritor. Não foi à toa que afirmou: “É triste não ser branco”, em seu Diário íntimo; posteriormente, pelas temáticas que abordava em seus textos, que desagradavam pelo incômodo que geravam por colocar a nu as mazelas que assolavam – e ainda assolam – a sociedade brasileira de sua época: a desigualdade social e de cor, a misoginia, a corrupção, a vaidade do cenário literário, para citar alguns dos temas recorrentes em sua literatura.
Além disso, houve o vício da bebida, a epilepsia e a reclusão em hospital psiquiátrico. Ainda assim, tais percalços não impediram que o autor continuasse a escrever, produzindo obras como Recordações do escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma, Os bruzundangas e Clara dos Anjos, além de contos, crônicas, textos autobiográficos, etc.
Em suas obras, vê-se bem demarcado o ponto de vista do afro-identificado, a explicitar as contradições de uma sociedade que se queria moderna, mas mantinha “velhos costumes”, sobretudo em relação aos mestiços e negros, que sofriam com os impasses sociais e econômicos que lhes eram impostos, os quais, de certa forma, os excluíam da sociedade. No entanto, era por meio da exposição dessa mancha na história brasileira, em que a escravidão, mesmo após a abolição, permanecia de modo residual nos atos e comportamentos mais simples, que Lima Barreto cumpria seu objetivo: incomodar, especialmente, a burguesia branca.
Vale ressaltar, contudo, que sua obra não se restringe à perspectiva temática racial. A linguagem do escritor mostra também sua preocupação em combater qualquer forma de dominação linguística, manifestada por três vieses: o preciosismo gramatical, o purismo linguístico e o academicismo estilístico (SILVA, 1998).
Por conta disto, o escritor se insurgiu contra o poder coercitivo da norma culta, o que levou alguns gramáticos a considerá-lo desleixado e negligente a respeito da língua portuguesa. O que não perceberam é que foi nesse “desleixo” com a linguagem que o escritor manifestou seus traços de modernismo antes que o próprio movimento se consolidasse. Ainda assim, isso não impediu que Lima Barreto sentisse certo desconforto para com essa vigilância sobre seu estilo de linguagem, sentimento esse perceptível na afirmação que fez em uma carta dirigida a seu amigo Lucilo Varejão: “eu temo tanto esses tais clássicos e sabedores de gramática como a qualquer toco de pau podre por aí…”.
De todo modo, manteve sua proposta estilística, defendendo-a de modo que ele não se preocupava “com essas cousas transcendentes de gramática e deix[ava] a [sua] atividade mental vagabundear pelas ninharias do destino pela Arte e das categorias do pensamento”.
A partir daí, entende-se que Lima Barreto possuía a consciência da flexibilidade e das variações da língua, prezando pela clareza ao transmitir ideias, sobretudo se se tratava de questões sociais, a fim de ampliar o alcance que sua literatura pudesse atingir.
Atento à realidade de um povo predominantemente analfabeto ou com pouca educação, Lima Barreto se opôs a uma tentativa de domar a linguagem literária que estava distante do cenário linguístico da população brasileira. Essa divergência foi apontada pelo escritor na obra Os bruzundangas: “aquela (linguagem) em que escreviam os literatos importantes, solenes, respeitados, nunca consegui entender, porque redigem eles as suas obras, ou antes, os seus livros, em outra muito diferente da usual”.
O que se quer destacar aqui é a importância do escritor referido para a literatura brasileira, especialmente por ter sido um testemunho da sociedade de seu tempo, por meio do olhar oriundo dos subúrbios, das periferias, daqueles considerados minoria (quando, na verdade, são maioria)…
Considerando a conjuntura em que vivemos no século XXI, de efervescência política marcada por posicionamentos contraditórios e antagônicos, ler Lima Barreto é ter contato com uma escrita engajada, que põe em xeque temáticas ainda bem atuais, fazendo-nos refletir sobre “que país é este?” e a instigar nosso senso crítico, no intuito de, enquanto leitores e sujeitos sociais, sairmos da alienação e da passividade. Lima Barreto, sem dúvidas, tem muito a nos ensinar sobre o Brasil de hoje.
REFERÊNCIAS
BARRETO, Lima. Correspondência. São Paulo: Brasiliense, 1956. Tomo II.
BARRETO, Lima. Impressões de Leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956.
BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. São Paulo: Ática, 1985.
SILVA, Maurício. A linguagem do poder e o poder da linguagem: Lima Barreto e a Língua Portuguesa. Revista de Estudos da Linguagem, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, vol. 7, n. 1, p. 91-105, 1998.
Blogger, Andarilha na Literatura e Doutora em Letras. Colunista na Revista Entre Poetas e Poesias.